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Corpo-carne Corpo-sagrado: um diálogo com o acervo do MAJ
Local
Museu de Arte de Joinville
Data
01/08/2025 a 21/09/2025
Localização
Joinville - Santa Catarina / Brasil
Exposição
Corpo-carne Corpo-sagrado: um diálogo com o acervo do MAJ
A experiência humana é, em sua essência, uma constante negociação entre o tangível e o intangível, entre a materialidade bruta da existência e a busca por significado que transcende o físico. É nesse espaço de fricção e revelação que a exposição se estabelece, propondo uma imersão profunda nas múltiplas dimensões do corpo: do efêmero e vulnerável ao eterno e sacralizado. Aqui, o corpo não é meramente um objeto a ser contemplado, mas, como o filósofo Maurice Merleau-Ponty nos ensina, a própria condição de nossa experiência no mundo, o nosso corpo vivido ou corpo próprio. É por meio dele que percebemos, agimos e atribuímos sentido à realidade.
A mostra é concebida a partir do olhar do artista Jean Smekatz, que, em um momento crucial de sua trajetória, não apenas apresenta obras de sua autoria, mas também estabelece um diálogo vivo e provocador com obras selecionadas do acervo do Museu de Arte de Joinville. Este encontro entre o contemporâneo e o histórico, entre a nova produção e a memória institucional, revela a perene urgência de questionar e reinterpretar o corpo enquanto campo de significados, rituais e sacrifícios. É uma exploração da nossa inerente corporeidade como fundamento de nossa relação com o espaço, com o outro e com o tempo.
Smekatz, com sua sensibilidade particular, convida os visitantes a uma jornada que desvela o corpo como carne, em sua impermanência, em sua fragilidade, em sua capacidade de sentir dor e prazer, de se manifestar e desaparecer. Suas obras nos aproximam do corpo em sua dimensão fenomenológica, aquela que é sentida, percebida e que nos constitui enquanto seres no mundo. Obras como SUDARIUM (2024), apresentada tanto em vídeo performance quanto em foto performance, e a pintura O dia em que Cristo morreu (2024), realizada em tinta automotiva sobre tecido, resgatam a ancestralidade do corpo como testemunha e depositário de memórias, sofrimentos e rituais. A materialidade da tinta automotiva em suas telas ou a performance que evoca o lendário Véu de Verônica, são um convite à reflexão sobre a corporeidade em sua máxima vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, sua persistência simbólica, remetendo ao corpo como um sistema de expressividade primordial. Essa exploração se aprofunda na série Ossinhos, Série Ancestralidade (2025), por meio da qual pequenas esculturas em cerâmica e prego evocam a memória dos que vieram antes, transformando fragmentos ósseos em relíquias que remetem à vida, à morte e à contínua conexão com nossas raízes. Aqui, o corpo-carne se desdobra em memória e ancestralidade, reforçando a ideia de que somos nossos corpos e que eles carregam a história.
Da mesma forma, Corpo (2021 - 2025), escancara a dualidade do corpo enquanto superfície e profundidade, vulnerabilidade e resistência, num ato de pintura que é quase um registro arqueológico da presença. Ela nos faz sentir a espessura da carne e a textura da pele como superfícies de contato com o mundo. Acompanhando o corpo em movimento, a série Território (2022/2024), em vídeo e foto performance, explora a maneira como o corpo ocupa e é marcado pelo espaço, tornando-se ele próprio um território de experiências e transformações. Essa é a essência do ser-no-mundo merleau-pontyano, onde o corpo não está no espaço, mas é espaço, um ponto de vista móvel e ativo que organiza a nossa percepção da realidade.
O cerne dessa exposição, contudo, reside na inteligente teia que Smekatz tece com as obras do acervo. A escolha de artistas como Hamilton Machado, Luiz Henrique Schwanke, Rosana Bortolin e Siron Franco não é aleatória; ela ressoa com os temas que Smekatz aborda, criando pontes entre o passado e o presente. Esses diálogos revelam a atemporalidade da condição corporal como experiência fundante da arte e da existência.
A obra O dia em que Cristo morreu (1969), de Hamilton Machado, dialoga intrinsecamente com a peça homônima de Smekatz. Essa justaposição convida à reflexão sobre a representação da figura de Cristo (o corpo em sua mais emblemática expressão de sacrifício e redenção) e como essa imagem tem sido revisitada e ressignificada através das gerações e das linguagens artísticas, do desenho à tinta automotiva e performance. Ambas as obras nos convidam a sentir a densidade e o impacto de um corpo-sofredor, um corpo que, em sua materialidade e fragilidade, carrega um sentido que transcende a mera anatomia.
A contribuição de Rosana Bortolin, com sua Oferenda I – Série alguidares (1998), estabelece um elo visceral com a dimensão do corpo-sagrado e do ritual. Os alguidares, frequentemente associados a oferendas em ritos afro-brasileiros, e os pregos, que podem evocar tanto a dor quanto a fixação de um propósito, aprofundam a discussão sobre o corpo como palco de práticas devocionais, sacrifícios e conexões com o transcendental. A presença dos pregos em sua obra ecoa a materialidade agressiva e contundente dos pregos na obra Corpo de Smekatz, estabelecendo uma continuidade de linguagens e simbologias. As obras, assim, nos remetem ao corpo não apenas como um organismo, mas como um sujeito que interage com o mundo, sente, age e se manifesta ritualisticamente.
Siron Franco, com sua monumental Salvai nossas almas I - Série Césio (1999), traz uma perspectiva brutal e poética sobre a vulnerabilidade do corpo. Esta obra, nascida da tragédia do Césio 137, expõe a fragilidade da carne diante de forças invisíveis e destrutivas, ao mesmo tempo em que as roupas usadas trazem a memória tátil do corpo ausente e as radiografias revelam a anatomia oculta. É um poderoso contraponto à busca do corpo-sagrado, mostrando a carne corroída pela história e pela radiação, mas ainda assim carregada de uma memória quase sacra. A escolha de Smekatz por esta obra de Franco ilumina a intersecção entre o dano físico e a resiliência espiritual, a memória coletiva e a dor individual. A pele, os tecidos e as imagens internas do corpo exposto por Franco são testemunhos de um corpo que sofre e se transforma, reconfigurando a nossa percepção da sua integridade.
Já a obra de Luiz Henrique Schwanke, artista cuja produção frequentemente mergulhou em representações do corpo de maneiras distintas, certamente amplifica essa conversa, na discussão da antinomia entre o corpo-carne e o corpo-sagrado. Em sua produção, a figura humana é frequentemente representada com profundidade, expondo a fragilidade, a dor e a finitude que a ligam à experiência mundana, ao corpo-terreno em sua materialidade palpável e perecível. Contudo, é precisamente dessa materialidade e do sofrimento que emerge a potente busca pela transcendência e pelo sagrado. Schwanke eleva o corpo de mera carcaça a um receptáculo de uma aspiração espiritual, transformando-o no palco de uma epifania ou de uma libertação, quando o efêmero anseia pelo eterno. Sua produção, ao tensionar essa dualidade – a carne que decai e o espírito que ascende – revela que o corpo não é apenas o ponto de partida da percepção e expressão artística, mas também o campo de batalha onde o transitório se encontra com o divino. Assim, a obra de Schwanke solidifica a premissa de que o corpo, em sua complexa dualidade de terreno e sagrado.
Corpo-carne Corpo-sagrado é, portanto, mais do que uma exposição: é um convite à introspecção e à conexão. É uma manifestação artística da fenomenologia da carne, que nos recorda que somos seres encarnados em um mundo compartilhado. É a reafirmação de que as grandes questões humanas, a existência, a fé, a dor, o ritual, a morte e a redenção, encontram no corpo seu mais primordial e eloquente suporte. Jean Smekatz, ao dialogar com o acervo do museu, não apenas apresenta sua visão, mas também ilumina a atemporalidade das preocupações artísticas, convidando-nos a ver o corpo não apenas como matéria, mas como um campo de infinitas possibilidades, tanto carnal quanto sagrado.
Alena Rizi Marmo (ABCA)
Curadora






































































































